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Insone

Atualizado: 14 de mar.



Os olhos fechando e o corpo leve mostrava os efeitos não só do álcool . Era mais uma tarde de bebida naquela varanda diante de um crepúsculo lindo, mas também a exaustão de um dia de trabalho cansativo. Tudo é muito perceptível no ambiente. A tampinha que rolava no chão acusava mais uma garrafa aberta entre tantas outras que faziam fila no canto da parede.


A sonora na vitrola é de uma sensibilidade que transborda toda calma e leveza do artista, suas letras fazem preencher o local harmonizando os pensamentos iguais às noites intensas vividas, espremidas, entre corpos suados e desejos maciços de puro prazer.


Todas as lembranças estavam ali, a prova das emoções, todos os encontros, os momentos fortes de prazer jogados, plenos, imortais, desejados e longos passavam diante de seus olhos refletidos nas nuvens daquela tarde.


O mesmo medo que afasta é o que quer juntar, almeja e quer passar por todas as perturbações pós-encontro. É um grande jogo onde dois podem jogar, mas só um talvez, terá a racionalidade permitida. Deixando o outro se perder entre a realidade e o imaginário. A fotografia suave do rosto dela, os seios nus, a luz opaca que ainda mostrava de forma suave o contorno do quadril encoberto por uma camisola que insistia em não cair. As lembranças tão reais que o corpo começa agir diante da imagem. Depois de algumas cervejas tudo é mais fácil, difícil resistir aos pensamentos.


Existe certo descontrole provocado por tantas formas de amar, por tantas atitudes e até mesmo por gestos minuciosos da face dela, registrado nos momentos íntimos no HD da sua memória em 4k. Aquele olhar é matador, é um tiro no coração, um alvo certo. Ela nunca brinca e só entra em uma guerra para ganhar mesmo que ela tenha dúvidas disso.


Mais um cigarro é aceso e espremido na mão que automaticamente se leva a um trago expondo a fumaça ao ar. O desenho do jato aspirado do tabaco provoca sensações embutidas, escondidas nas entrelinhas de pensamentos, tudo depois daquele momento era desejo, vontade de varar noite e corpo. O telefone descarregado era uma estratégia para o momento de fraqueza, incertezas e uma ponta de orgulho, mas o querer e ter o controle da sedução ultrapassava o anseio. Isso o faz perguntar: se o seu coração é bandido, sedutor ou tudo ali é desamor insone? Outro trago de cerveja e o pensamento expresso na voz suave de olhar profundo – Que seja eterno, pelo menos em pensamento.


Existe realmente ausência de amor em meio a tudo que já foi vivido, degustado, lambido, gozado, extenuado de forma intensa e corajosa? Parece que o coração dele só percebe o que é ilusão, a realidade está exposta nas garrafas ao chão.


Os olhos fixos na capa colorida do vinil depois de tantas doses fazem o desejo aumentar ainda mais e mais. A verdade é que quanto mais o crepúsculo ao fundo de sua varanda cai, sua alma voa em direção ao espírito dela, tentando encontrar no universo uma porta para celebrar mais um encontro de almas. O rei quer virar sambista na varanda, na avenida e na vida. Quer sim sambar no prazer.

***

O seu corpo na cama quase sem roupa em decúbito dorsal, dava uma visão detalhada de toda grandeza que existia ali em repouso. Os pensamentos planavam e os gostos mais impuros que não eram retratados nem mesmo em conversas íntimas com amigas. A temperatura do corpo subia na medida que os pensamentos evoluíam, ela queria aproveitar cada instante de bel-prazer excitante com mais amor. Expor seu corpo ao limite do desejo, sem regras, sem censuras religiosas. Ela quer a ir à forra em cima de uma sociedade vil com suas regras quadradas de se falar de prazer, como se amor também não fosse phoder ou trepar.


Pensava entre seus botões da blusa já ao chão e pernas lindas e longas que o limite do corpo e o uso dele são regras que cada um deve ter. Os limites impostos são nada mais que leis inventadas por um sistema religioso que camufla os desejos internos, são falsas e querem para eles a realidade. Quem inventou que o prazer é um pecado de certo nunca sentiu metade do que o sexo quando bem encaixado e livre pode dar ao amor.


De telhado em telhado as pedras rolavam imaginando o quanto uma pessoa poderia ser ignorante ao ponto de não querer, por meio de uma sociedade, explorar de maneira mais ampla os seus limites sem se sentir culpada.


Pensou em sair e se jogar ao mais extremo prazer depois de uma semana cansativa de trabalho, mas ela não queria com qualquer um. Pensou em colocar uma roupa confortável sem nada por baixo, pensou em provocar, queria ir ao corredor e bater na porta dele nua encharcada de desejos. Queria explodir os puritanos pérfidos com uma granada na bunda de cada um deles.


Parou de pensar e se vestiu da mais plena certeza do que queria naquela tarde quase noite. Seu limite era a entrega. Experimentar o mais puro e limpo manto do prazer, o mal que ainda não se deu.


Foi até o final da rua sobre a visão dos cidadãos de bem que a admiravam com fome e olhares de eternos anjos da escuridão. Parou em frente de uma varanda, a luz da noite deixava as estrelas no céu com ciúmes diante de tanta beleza na terra. O poste lhe acertava um raio luminoso santificando seu corpo feito uma flecha de luz vinda do firmamento.

***

Ele pensou que naquela altura o desejo e o álcool estariam tomando conta de vez de sua imaginação, ao ponto de arquitetar um anjo parado no outro lado da rua. Plena, serena, cabal e fulminante era ela em forma de mulher, anjo e prostituta. De forma leve ela armou um sorriso suave, olhou meio de lado com a cabeça inclinando lentamente para baixo. Ele desejou, levantou da cadeira e fez sinal para ela subir. Ela deu um leve sorriso, estendeu a mão pegando a chave. Aquela chave não abria só o portão, mas todas as grades daquele coração que de tanto pulsar parecia que iria sair pela boca.


Ao subir viu uma sala à meia luz repleta de plantas, quadros em todas as paredes, uma vitrola rolando um vinil com uma capa psicodélica jogada ao lado, mesa vestida de renda branca, canecas expostas e um pequeno jarro de plantas ao centro. Olhou para a varanda, ele estava parado encostado na porta com o ombro apoiando o corpo na parede, de sorriso leve esperava o próximo movimento dela. Perceberam que a sala estava vazia, eles estavam cheios de pensamentos. Ela então andou lentamente até seu encontro, uma lágrima rolando pelos rostos demonstrando a saudade que ambos estavam.


Entre abraços apertados, rostos que se procuravam, respirações que se confundem olhares cruzados, e igual a dois animais amáveis e instintivos, sentem o cheiro um do outro e entregam-se expulsando, derrubando, jogando tudo de cima da mesa. Os corpos se colam pernas em quadril, se encaixam à vontade e os desejos se misturam. Ela faz seu jogo de sedução, se coloca a disposição, toques, vibrações de energia. Corpos prestes a pegar fogo, quentes, ardentes, sabem o que querem como querem.


Ele quer mais, devorar cada pedaço, conhecer as partes mais íntimas, lambuzar a virilha, beijar lábios e passear por onde ela mais almeja.


Horas se passam em segundos, o lado B do vinil se repete na vitrola e depois de cada relação amorosa, eles querem mais. Pensam que o mundo inteiro parou diante de tanto amor e desejo. Refletem sobre a insanidade sexual amorosa e letal, de certa forma até leal.

A madrugada avança na sala, roupas espalhadas, copos quebrados, garrafas deitadas, corpos pelados e ainda entrelaçados, molhados, melados de afagos e tanto gozo. Sussurram sobre o prazer de poucos momentos atrás e se perguntam; onde estavam antes disso tudo? Lamentam o tardio encontro. Ele às vezes se acha um tolo romântico. Ela se mantém séria e anuncia no olhar uma risada deixando-o confuso com toda sua racionalidade, mas eles querem mais e mais. E assim o faz perceber o quanto tem a florescer, o desabrochar da vida que é intensamente revelador.


Quase ao amanhecer ela com a cabeça em seu colo, sentindo todo o carinho de sua mão depois de mais uma sessão, o corpo relaxa, não quer mexer, a respiração é lenta, olhar é de afago e carinho. Abraçados em um ninho, ela lê baixinho as letras da capa daquele disco que não parou um só segundo de ser repetir. Sentiu que era uma trilha sonora perfeita para aquele quase amanhecer. Recitou para ele o que estava escrito na letra, ele sorriu, passou a mão mais uma vez sobre sua cabeça linda e perfeita, permanecendo calado, admirando o momento.


Ela perguntou quem era na capa do disco, o cabeludo barbudo de camisa aberta, mostrando o peito. Ele pensou e falou - Santiago. - Esse disco é meu! Exclamou de forma dengosa. Olhou para ele abraçando-o rolando mais uma vez no chão da sala até chegar à varanda e sentir um fio de raio do sol penetrando com todo amor em seus corpos quentes e insones.


Insone:

Conto inspirado na música “Insone” do poeta, compositor e cantor; Notlim Santiago.


Insone é uma música transformadora, é a segunda vez que falo sobre ela aqui, só que agora é diferente. Escrevi esse texto inspirado nesse poema musicado de Santiago para ser um presente de aniversário. O meu presente!


Salve 05 de Julho de 1977.

Salve a vida, ontem, hoje, amanhã e depois.

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